segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Rita Isadora Pessoa







"nota sobre a manufatura doméstica de mitos autodestrutíveis"

na nossa pequena fábrica de ruínas
eu pedalo indoors
porque não sei bem o que faço
com tamanha liberdade
tenho um pouco de medo dos grandes espaços                     abertos
por isso os círculos
                   por isso
eu puxo os  aparelhos ergométricos pelos guidões
um suave deslocamento sem [realmente] sair do lugar
puxo a bicicleta pelo guidão riscando o chão da sala
como se segurasse
um touro pelos chifres
~um minotauro ex machina
de uma mitologia recém-criada ~
e finjo assistir um seriado sentada
ou termino um romance russo esfarelando
páginas amarelecidas
        compreendo bem todas as suturas
do mais célebre parricídio da literatura

por isso os círculos



                                           por isso
as tentativas insalubres de figurinos extras
como se estivesse finalmente preparada
para ocupar o papel de protagonista

e esses furos acidentais
seguem perpetrados pelos dedos
ou pela máquina de costura?

por isso
os capilares intradérmicos
perfurando invisíveis
partes ainda por vir
        do meu corpo

e o aprendizado lentíssimo
da pecilotermia
 meus minidemônios meridianos
brotando barbatanas brânquias
                           braços

enquanto fraturo
ossos imaginários
para acolher
em silêncio
    uma nova ordem

                   de feras

                                                                       







 por isso
você sabe
 os círculos


xxx


"escrevo teu nome no grão"

por tudo o que tomba
sem se reerguer sem
sequer lembrar da queda
        pela sombra
que nunca é proporcional
   à luz         
                 pela sombra
que não é proporcional
de maneira alguma
                      à luz
te escrevo o nome
onde se escondem
as montanhas
onde o sinal do celular
    n ã o           pega
nãopega nãopega n-ã-o pe-ga
escrevo ainda
com a tinta
que extraio dos moluscos
que aparecem mortos
pela praia
no inicinho da manhã

pelo esquecimento compulsório
    da
     q
     u
     e
     d
     a



"escrevo o teu nome
   no grão de arroz"

porque saturno retorna
        fora de hora
e a sombra não é proporcional
               ao facho de luz
             que te acompanha
[e é um absurdo que a luz
produza tantos monstros
com tamanha facilidade]
porque há sim pulsação nos vasos
         altamente periculosos
           das minhas pernas
e por tudo aquilo que tomba
                 sem levantar-se:
toma este grão luminoso
 onde te escrevo o nome
   devidamente instalada

             na virada invisível
                                 do rio


xxx


"uma mulher sob influência"

queria escrever um poema sensorial, um sobrevoo rasante, ébrio, erótico,
com palavras que pudessem salvar algo disto aqui, mas o poema ele fracassa.
o poema fracassa justo onde eu preciso ser salva, justo onde eu, como gena,
mabel, como outras, como todas as mulheres que levantam os braços e rodopiam
com ou sem roupa, pelas ruas ou entre paredes, em silêncio ou aos berros,
            justo onde enlouqueço numa sazonalidade que não omito

                                                                                         mas não controlo.

queria escrever um poema que colasse no corpo como um drink açucarado que seca
sobre as pernas no dia seguinte após ter sido derramado numa noitada sem que fosse
sequer percebido. mas o poema fracassa porque esta loucura
porque esta loucura tem o formato de dunas que se movem
lentíssimamente durante a noite, rearranjando uma nova paisagem estática
ainda que movente a cada dia.
                           
                                      o poema ele não se curva
                            ele é tão domesticável quanto uma onça
                                     fumando charutos cubanos.

mas se você superar isto e seguir adiante, o poema te oferece
                                  uma delicadeza selvagem
como a de um gato que brinca monotonamente com um balão de gás
                                                           já meio murcho,
rolando-o pelo chão com as patas e unhas, mordiscando de leve, 
                                                                        sem o destruir.

      queria mesmo que o poema tivesse uma qualidade profética,
                     que inaugurasse um universo paralelo
           mas o poema é bidimensional; ele tem a velocidade
          de gotas descendo espáduas octagenárias, incorrendo
               em cada vinco, hesitando nos profundos sulcos,

                            
                                           ensaiando um desvio
                                       a cada acidente epidérmico
                                             causado pelos anos.


xxx


"teresa"
para aquele que tem mar no início, meio e fim

tenho te escutado
com considerável dificuldade,
como aos balbucios morninhos
que escapam de um gato
      sobressaltado
      durante um pesadelo
-- baby, por cierto, ¿sabes?
                     con qué infierno
                      sueñan los gatos?

não me resta outra opção
senão organizar meu tempo:
a) categorizando objetos;
b) esculpindo sisos extraídos;
o fato é que crio pontes de heras
para tuas frágeis elipses
e faço de mim tua vodca
em tempos de crise.

você, tez amadeirada
de contorno impreciso.
você, puro pêndulo
que eu sulco, inteiro
justo naquilo que se arrepende
                a i n d a     n o      a r
                inseguro
                e densamente noctívago.

eu, a primeira lasca
                  -- goiva
       de duas pontas
feito lança que arpoa
                   em cheio

                   mas
                   não
                   retorna.


xxx


"dos rumores que se instalam"

     não posso dizer que
  ignoro com seriedade
a consciência do medo
                nas gengivas
e a eletricidade que alimenta
o corpo venoso brutal
da vergonha porcamente
equilibrada nos joelhos.
          como é possível
que a despeito de tudo
         as gentes sejam?
que sejam com pavor,
e dentes caninos a mostra,
                 mas que sejam.
a mim, é impossível
deslizar com graça
por essa existência
de pequenos naufrágios
de impossibilidades rotundas
de quebra-mares.
ouço um fino assovio
              que assegura
o cativeiro de muitas feras
nos porões deste navio
        e sei dos rumores
instalados, pesando sobre
grossas cordas e velas içadas:
o coração batendo vivo
no fundo desta caixa.


xxx


"supernova"

              tenho contido
             entre os dedos
             uma resolução
cabisbaixa ante o sono
eis que tenho evitado
meus próprios olhos
em reflexos
vidros polidos
cobrindo espelhos
como se faz após uma morte
                    ou na iminência
               de  tempestade
                 de raios
      palavras setas
  galáxias em colapso
em templos esvaziados 
                  panteões
em abandono dorsal
um desterro nuclear

é preciso sobretudo saudar
        a colossal quantidade
        de massa
   concentrada
em um minúsculo ponto
                    no universo -
nada escapa
à tua força gravitacional
           nem mesmo a luz
nem o início
      o sentido de todo amor 
            e do mundo inteiro
nem os artistas e os estetas
     os anjos com trombetas

isso tudo indica
que sofremos de
qualidades extintas    aladas
estrelas em último    estágio
                         de evolução
é bem verdade que
                nêutrons
[tuas palavras agônicas]
não nos                  salvarão
pois        deste sistema binário
                      fechado fecundo
em órbitas    circulares
não se sai com graça
nem de graça

          perceba
   há um preço
 se  uma força
         aplicada
  a uma massa
  de um corpo
em        r e p o u s o
    é  d e r i v a
tudo há de ser
  impermanência
    :  m a r
 do início
 ao   f i m

[ do  fim  ao
   i  n  í c i o ]
    dos tempos


xxx 



"nota sobre um inferno astral em quase dezembro"
ou
"prove que não sou um robô"

hoje falo por mim,
                 eu
                 [gargalhadas]
que suo gotas constrangidas
ao ouvir minha própria voz
                        ao telefone
    como a de um estranho
falo por tudo aquilo que fala
por intermédio de um vermelho
        terroso violento atroz
                  como em
modigliani, como no abstracionismo russo
                                          que mata poetas
                                em linhas geométricas

e por todos
aqueles que golpeiam os telhados
como gatos revolucionários

                         por toda e qualquer
                       sensação existencial
[na fronteira anatômico-imaginária
entre boca do estômago e pulmões]
por todo sentimento filosófico-existencial
de terreno baldio
inviolável
selvagem como um poodle abandonado
                                                no parque
                         como uma abelha rainha
                         presa    por um barbante


inauguro hoje com a ponta dos pés
             essa hospedagem ambígua
   na casa número doze do zodíaco
onde é preciso prestar contas
                à esfinge moderna
                          com senhas
              de letras e números
            e enigmas insolúveis

   "prove que você não é um robô"
            [   ] não sou um robô





prove
que
não
sou
um
robô


xxx 

  

tua queimadura de sol
invoca a existência
de um metabolismo secreto
pois, quando gotas do tamanho
              de gatos siameses
                                    pendem
pelos teus cílios compridíssimos,
teu corpo inaugura
          essa dança de exílio
:    porque o amor é a causa de tudo
            que       levanta       v o o
                    e       pousa    sem      memória.



 a hora do chumbo
                          é nossa
pois        há algo
de profundamente tocante
    no teu desespero ígneo,
no torpor vaporoso que tomba
     de   nosso limbo doméstico;
                há algo de bárbaro
no desalento único, tão teu,
na sombra de dois corpos
                       consonantes
e por isso mesmo aterrorizados,
                    prodígio do fulgor
de carne, dentes, pele
                                  e pelos.


nosso
caso é antigo, oxóssi caçador -
      flecha disparada na mata cerrada.
note a rosa dos ventos
esculpida no teu peito e aceite
                                 o que há
:  uma constelação nossa reservada
     há séculos, por anos-luz

                        [siga as setas, siga a água]






Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio, em 1984, é graduada em Psicologia e não graduada em Estudos de Mídia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal. Acredita veemente na inter, na trans e na indisciplinaridade, mesmo que seu Lattes pareça um livro de Herman Hesse. Trabalha como tradutora, revisora, astróloga, taróloga, figurinista e eventualmente é quiromante voluntária para amigos e desconhecidos sem hora marcada. Seu primeiro livro de poesia a vida nos vulcões será lançado no final de agosto de 2016 pela Editora Oito e Meio.

  


 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Bruna Mitrano









































ela pediu pra eu não enlouquecer
parei de tomar os remédios pra tentar ser gente
mas uma chuva forte caiu
era janeiro
e me escorreguei
perdi o senso
disseram
é temporário
os tremores noturnos
a matriz de uma ânsia descabida
os rostos na janela
todas as noites
os rostos que catequizam as janelas
nas casas sem muro
não há o que se ver que não sobrecarregue a carne
o corpo ainda sente
curva-se ao inevitável
tomba no meio da rua e conclui
não se dá as costas pra morte
há sempre um diagnóstico
preto no branco  
vou morrer de tempo ou
vou fazer o quê?
re:___________________.
   

xxx


o homem abocanhava
a pele elástica de frango atirada
à calçada.
comia por todas as necessidades,
acocorado em sua miséria.
com os dedos empapados,
gargalhava e puxava o cabelo,
no transe de ser ignorado.
















































sem virar a cabeça
me pergunta a hora
de ir eu não sei a hora
de ir eu nunca sei
como me curo de mim
mas sabe Iolanda
velha louca bruxa
nasceu mirrada e virou deus
queriam fosse vermelha
era preta e quem diria
no sino do trovão escalava o tempo
e gritava de ir bem
ir bem ir bem ir bem
quando a areia deitava na palha
chão de terra batida tirava sandália
e dançava Iolanda
que os urubus sobrevoavam
a caspa pisa da mulher abru
pta quem diria Iolanda era deus.


xxx


rasgava a camisa com os dentes
a raiva desnudada de pavor
e se deixava à beira
como adestrar a mão convulsa?
o mijo morno entre as cobertas era como peitos grandes pietá
aninhava-se no turbilhão do que era
reconhecia
seu corpo
erguendo à boca a própria armadilha
e lembrava das frutas que nasceram podres
as que nasceriam pra sempre. 


















































ainda falava em reparação
o nariz bicando a asa de frango frita
boca e mãos luzindo engorduradas
meu bem, seu amor é patético ao meio dia.
e a cara amarela desde a manhã
se havia
um grito vinha da cozinha
geladeira velha
bebo água e a voz grave do vizinho me treme
outro copo quebrado
varro mal
esqueço e
ah esse calor terrível
deito no chão
você acha que vai chover?


xxx


choque
uns passos
segundo plano
acho que vi um milagre!
acho que vi!
as mãos estavam vazias
quando o homem louco
aos berros no meio da rua
esclareceu
o último gole
a raiva ainda alinhada
é difícil, ele disse,
morrer.

















































já não alcançava seu sono
lembrava de quando podiam ser tristes juntos.
soubesse a hora de ir, calaria
e encolheria o corpo raquítico sob a coberta embolorada.
por outro extremo, lacunava-se em palavras rasas,
entregue, farta, extasiada
que não pesasse ser pó, havendo mãos. 


xxx


a cabeça de lado, o pelo na língua, os roxos na pele. aqueles homens apaixonados pelas coisas erradas, pelas pessoas erradas. estive muito tempo dentro dos dias, e não olhar pra trás era o mesmo que pedir não me deixa ir. mas há beleza no hálito doente, nas vicissitudes dos corpos, no rasgo imprevisto na carne, e não tão só, quando a espera é o grito.


xxx


puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde

















































o ruído dos dedos esfregando a barba
os olhos inarticulados nos pesadelos diurnos
as luzes fragmentadas nas paredes exaustas de tantas
falas –
era quando fingíamos ser livres
e em silêncio cada um olhava pra si
desconjunturando a barbárie desses tempos
inaudíveis.






Bruna Mitrano (1985) é favelada, professora da rede pública e mestre em Literatura Portuguesa (UERJ). Em 2010, esteve entre os vencedores do Prêmio Off-Flip. É autora fixa na revista Mallarmargens. Tem textos e desenhos publicados nos: Contemporary Brazilian Short Stories (Califórnia), Flanzine (Portugal), jornal Plástico Bolha, revista Germina, Zine Joia, blog da Confraria do Vento, blog da Editora Oito e Meio, Fórum Virtual de Literatura e Teatro, revista Tlön (Portugal), revista Diversos Afins etc. Participou das antologias Algum vazio nesta paz fajuta e Clube da Leitura Vol. III. Seu primeiro livro – Não – será lançado em breve pela editora Patuá.