quarta-feira, 27 de julho de 2016

Post-protesto





































(ilustração: Bruna Mitrano)


Foi com demora, mas também com atenção que lemos e relemos os muitos poemas enviados para esse post especial, tendo sempre a consciência de estar lidando com um tema profundamente delicado, que precisa – e deve – ser tocado com o máximo de cuidado. E foi nos cercando de cuidados que fizemos essa proposta a autoras mulheres, sem querer, de maneira alguma, causar mais ferimentos a vítimas de abuso; pelo contrário, é por acreditar no poder da poesia que pensamos nela como caminho para o diálogo, como caminho para a visibilidade daquilo que precisa, sim, ser gritado e “regritado”, até que nos ouçam, enfim.

Em maio desse ano, uma adolescente de 16 anos foi estuprada por 33 homens na periferia do Rio de Janeiro. O crime, aterrador e inconcebível, não é o primeiro nem o último, e emerge de uma cultura inteiramente voltada para a construção de uma mulher-objeto, de uma mulher impossibilitada de reivindicar sua própria voz, seu próprio corpo, seu próprio estatuto de sujeito. Desde o princípio, a Oceânica surgiu exatamente com a intenção de ampliar a voz de poetas mulheres, dando a elas um espaço não tão facilmente encontrado nos usuais círculos de literatura. Então, é claro que não poderíamos, em hipótese alguma, nos manter caladas diante de uma agressão vivida por uma mulher que, sendo outra, é, ao mesmo tempo, todas nós.

E, assim, chegamos, enfim, a essas 21 mulheres, entre outras muitas, essas 21 mulheres com essas 21 vozes, entre outras muitas, ajudando a desdobrar os múltiplos gritos de protesto que temos carregado entalados na garganta. A todas que confiaram seus textos à Oceânica, nosso mais profundo agradecimento! Que as vozes, juntas, possam alcançar mais ouvidos; que a poesia nos mostre (e ela sempre mostra) algum caminho; porque, nós sabemos, os 33 são muito mais que 33, mas também nós somos muitas, somos gigantescas, somos grandiosas, somos oceanicamente imensas quando estamos unidas.





sem título
(Mary Prieto)

O que resta da poesia 
quando a banalidade se levanta 
quando a bestialidade se 
agiganta e se impõe? 

O que resta da poesia? 
precisei de 30 segundos para 
pensar. 
mais 30. Um minuto de silêncio. 
E quantos de respeito? 

O que resta da poesia? 
faz ainda algum sentido essa 
pergunta? 
estamos todos inconscientes do 
seu eco,
que dirá da sua resposta! 

O que resta, sem poesia? 
destacar a ausência fará 
diferença 
diante do que se repete todo dia? 

Rastros de corpo sem voz 
de corpo sem luz 
de corpos-pós. 
pós-signo 
e significados. 

Poesia é toda a beleza 
que luta 
pra não se deixar calar: 
... 
a poesia 
é uma mulher 
que grita ainda! 
... 
Apesar de 3 ou 30.


xxx


ferida
(Carla Carbatti)

quantas pássaras e placentas
podem ser mutiladas com 33 machados?
há uma enorme ferida
que atravessa os séculos e o meu sexo
minha ternura é escassa
desnuda
meus lábios se ferem da violência
das palavras que não se diz
das palavras que se diz
sem silêncio
quando choro
bailam comigo as sombras de todas as mulheres
que sofreram e sofrem a dor do seu próprio corpo:
carne em terremoto: pulsações intraduzíveis
uma enorme ferida
atravessa os séculos e o meu sexo
brecha na noite: abismo
onde vaga uma música sem asas
[aprisionada]


xxx


Ruth
(Juliana Hollanda D'Avila)

30 e tantos 
um campo vasto de destroços 
até onde alcança 

levanta o braço para apontar as 
ruínas atrás de si 

pesadelo terrível 
fico tentando acordar 

perdi nossa cidade toda 

o cenário de devastação 
é insuportável 

a parede de água preta e 
destroços 
a casa veio abaixo em segundos 

o teto desmoronou


xxx


Estupro de voz
(Victória Versari)

Afastem de nós esse cale-se
de padrões que obrigam disputa,
de mãos sujas em nossas bocas,
de assédios assustadores. 

Essa palavra presa na garganta,
engasgada, oprime nossa luta.
Melhor seria botá-la pra fora,
cuspir a verdade na cara da rua.

Mesmo calada a boca, resta o verso, 
 que denuncia, solta e arranha.
Quero escrever problema, o reverso.
Já nos cansamos de sermos “puta". 

Que esse grito desumano nos salve.
A saia é causa, é convite pagão.
O patriarcado usa tampão de orelha.
Silêncio nos becos não se escuta.


xxx


Este não é um vídeo 
é um poema sobre os homens 
onde eles não aparecem 
(Luanna Belmont)

 A menina é usuária de drogas. 
A menina foi mãe adolescente, 
tem um filhinho de 3 anos. 
A menina frequenta o baile da 
comunidade desde os 13 anos. 
A menina às vezes some por dias. 
A menina teria aceitado fazer 
sexo consensual. 
A menina é pobre. 

A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33.
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 

mas a menina é usuária de 
drogas 
é mãe adolescente frequenta o 
baile desde os 13 some dias 
aceitou fazer sexo 

A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 
A menina foi estuprada por 33. 

acontece que 
menina drogas mãe baile sexo 

estuprada por 33. 
estuprada por 33. 
estuprada por 33. 

veja bem 
menina sexo 

estuprada estuprada estuprada 
estuprada estuprada estuprada 

sexo menina 

33 33 33 33 33 33 33 33 33 33 
33 33 33 33 33 33 33 33 33 33 

menina 

ela 

a


xxx


Tabu
(Deborah Prates)

É difícil falar sobre estupro 
mais ainda, comentar sobre O 
estupro 
pior é amargar o silêncio sobre 
aquele estupro 
Eu não preciso citar nomes 
personagens cenários 
link da matéria 
vídeo foto ou depoimento 
de quem atendeu a vítima 
porque ainda assim 
você vai saber sobre 
o que eu estou falando 

precisamos falar sobre estupro 
mais ainda: discutir sobre O 
estupro enquanto uma vítima amarga 
silêncio 
todas as outras mulheres comungam a dor 
não importa se usa 
saia jeans moletom batom 
descabelada 
idade cor local religião 
com ou sem 
família trabalho história sonhos 
tipo físico? não importa 
tem buraco? 
os dois servem 

precisamos falar sobre estupro 
lutar contra palavra e tempo verbal 
"se", "suposto", "teria sido 
estuprada" 
poderia ter sido eu você 
sua mulher mãe irmã filha tia 
somos todas forçadas a 
engolir a seco tragédias diárias 
machismo apertando a garganta
empurrando injustiça goela 
abaixo 

vítimas de ontem, de hoje, de 
amanhã 
só pelo fato de ser mulher 
somos violentadas no parto 
culpabilizadas a priori 
julgadas ad infinitum 
amordaçadas dopadas 
desfiguradas 
legitimadamente desgraçadas 
desacreditadas 
todos os dias 
somos Ela


xxx


Estupro coletivo
(Mariana Imbelloni)

Encurva a coluna 
Esconde esse peito 
Também com essa bunda 
Ainda quer respeito 
Traiu o marido? 
Ó o tamanho do vestido. 
Se estivesse em casa... 
No caso, qual casa? 
A do "Ô lá em casa" 
Ou do assédio do padrasto? 
Tudo é nefasto quando contado 
Revolta on line contra os 
monstros tarados 
Mas que ninguém mencione seu 
estupro domesticado 
Seu convite ameaça 
Seu toque onde não foi chamado 
Sua piada sem graça armada 
contra meu corpo exausto 
Calado, você é trinta 
Seu riso é a sentença do meu 
fado 
Sua conivência me violenta ao 
cadafalso 

(Mas meu grito não se encerra 
nesse quarto 
Contra o claustro da tua cultura 
inculta 
Somos muitas)


xxx


etimologia do cálculo homem
(Carla Diacov)

homem
diga 33
33 homens
por que deveria dizer
são ordens clínicas
homem gentil que pensa e faz gentilezas
gentil cheiroso cheirando a cuidados
perene fibrosa vigilância
a jerarquia tende o ambiente
quanto mais disser o 33 mais ambiente temos
o número garante a soma o ímã a irmandade
o som localiza o ponto pervertido
o terceiro olho
lasso perrengue tartamudo
bem no meio da tua barriga
homem
diga
por que dizer
são ordens táticas
é um bom mantra
funciona há milênios
diga
homem
diga HOMENS
diga um poço de tanto homem
diga cabe ao homem
diga túnel inaugura precária hombridade
diga
é preciso o concreto atochado na palavra homem
diga subterrâneo mas não diga homem
33
diga glória interminável que nem coração de mãe
diga minha mãe e minha irmã trem bala prefeitura inaugura
diga tudo junto sem te engasgar
são ordens da pacificação
dizem
diga minha filha e minha sogra e minha avó
diga minha família é meu tesouro túnel inaugurado
diga meu abdômen é minha amante minha mão minha questão
questão de honra ser por que não dizer
diga 33 e diga homem
sou um homem com homens que me douram homem
tenho uma pistola e amigos que provam minhas reincidências homem
tenho O cara na causa
tenho O cara nas calças
diga mais da avareza no que diz
não são ordens são fotografias
são estátuas e são poses no que diz
diga
minha vida de homem agora é monumento ao homem
homem
o trigésimo quarto
num brasão bonito tetudo bronzeado
perigoso bandidão e de shortinho pega-ladrão
diga
para convencer maçãs e bananas
diga tudo e diga
33
o trigésimo quarto
por ordens do patriarcado no espelho pós barba
diga
sou o trigésimo quarto
faça uma piada com isso
dê um beijo na pistola
ganhe outro da mamãe mais um da filhota
e vá para a repartição mundo
que tanto te diz homem
digo
o trigésimo quarto


xxx


sem título
(Bruna Mitrano)

eu deitada em desmanche e você de pé, distante, cabeça curvada triplicando o queixo, um embaço e eu não reconheceria, não fossem as pernas abertas, os pés roçando meu quadril, seu pau ao centro tomando proporções desmesuradas, um pau maior que o corpo, maior que eu, que sangro e sangro muito, e meu sangue é vivo porque é sangue de quem se aborta, é sangue de quem implodiu e é arrancada a fórceps, eu que por precaução não desvio os olhos do seu pau, um deus que impele a ser tocado com terror mas, se não me restam mãos, olho, você se masturba com ódio de si, eu quero fechar os olhos pra não amar o seu ódio de si, consegue enxergar meu asco agora? sua cara de domingo cozinhando arroz integral, se eu dissesse que existir tem sido insuportável, me mataria? você diz que foram minhas somente minhas alucinações, mas já não acredito na verdade do seu corpo e por isso não deixo de te olhar com olhos enormes, apavorados, olhos que não posso fechar, olhões você disse tão grandes, menores que esse medo que arrebenta a carne em gritos, gritos que não chegarão até você, de pé, distante, como um deus ou tormenta.


xxx


leilão
(Norma de Souza Lopes)

desacelere seus passos
apoie-se no balcão
tome uma cerveja
ouça o pregão

do outro lado da sinuca
um delegado e uma avó
trocam apertos de mão

nove anos
virgindade arrematada
por cinquenta reais

a menina assiste
estática, só a assusta
o próximo leilão

a irmã de seis anos
brinca sozinha em casa


xxx


sem título
(Sofia Glória)

O vermelho escorre pelas pernas
Com as unhas, rasgo o peito e exponho um coração que
sangra, esfolado.
A pétala pende
- Não quero ser silenciada por mãos indignas do meu toque

Correntes pesam as duas mãos
exaustas e nuas, fartas do combate
                                 e espinhos.
O grito contido se esparrama e alastra o
fel
a dor
o asco
E tinge de sangue a terra.
o batom vermelho da boca seca
- Quero um grito que arranhe a garganta
e faça vibrar a hipocrisia desse silêncio amargo que adormece a língua

espinhos de horror percorrem
 - aos montes -
seu corpo
(dentes rangem)
a lágrima vermelha desce
e rasgam cada milímetro de pele que
resta
esgotam a sensação de dor até o ponto
de não sentir
senão
o desamparo
do nada
             quebrado.
- Quero um útero com fôlego de pulmão
e força de um braço

Suas mãos,
pensas,
limpas pelo seu sangue, que ainda jorra

Ele escorre e encontra a minha pena
que seguramente seguro com tantas mãos de luta e luto:

Escrevo até sangrar
O papel suga, sangra, se tinge
a pintura dança, sangra, grita.
Escrevo
Reescrevo a dança
Reinvento a escrita
Apago
Singro o sangue ao branco
Aquarela coral, luz escorre
Até tornar-se

Vermelho-sangue.


xxx


Trinta vezes
(Ana Farrah Baunilha)

Trinta vezes eu fui o choro contido
na minha cara de passarinho machucado
eu era toda ouvidos e boca fechada pro abusador
saco de pancada do psicopata
refúgio do esquizofrênico
eu era o último recurso
o sopro boca-a-boca no afogado
o rivotril dos insones
eu era vaga de estacionar
o lugar pra onde eles corriam
a gruta de acolher leprosos
o beco de esconder casqueiros

Eu costumava ser inteira pra eles virem desmoronar
eu era uma beira do cais um desterro
lugar de desmanche, descarrego, um cemitério
meu corpo de ferro velho,
ruína.

Virei patrimônio local tombado
por uso e descarte
lugar de despacho
esteira de rodar bagagem

Eu era toda em peças de encaixe,
desmontadinha dentro da caixa
pronta pra ser jogo na vida

Virei foi destroço num quarto de bagunça
as partes pisadas de uma boneca velha
despedaçada e fora de moda


xxx


sem título
(Camila Passatuto)

Quando abri a boca para gritar
contra injúrias e crimes, eles
lançaram coquetéis de calmantes
garganta abaixo. Ao questionar
toda violência depositada em
nosso corpo, injetaram mais
calmaria em minhas veias.

Sinta a razão adentrar. Senhora
das podridões absolutas.

Se acaso levantar o olhar para
questionamentos, irão surrar tua
língua, cortar teus seios e
apresentar teu cid abrangente, f20
ao f29.

- Preencha os formulários
corretamente, a unidade está
lotada, mas leito para uma puta...
sempre tem, aliás, como você é
bonita.

Toda vez que uma mulher aparece
na janela, aqui no topo do mundo,
eles rosnam, acariciam suas
pedras e aprontam suas fogueiras.

Sempre somos a mira.

Quando você abre a boca,
menina, toda sociedade te
analisa. Sabia? Antes da fala, eles
dão a posologia.

Mais calmantes, mais calmantes.
Antes que essa mulher se levante
e fale sobre misoginia. Porra, mais
calmantes.

Invalidaram nossa fala, nos
mataram, apagaram dos textos
nossa real escrita.

Podem trazer a camisa de força,
mas saibam que lá fora há uma
legião de tesouras portadas por
loucas, que cortam as amarras
minhas.

Mais calmantes.
Até mais uma se calar, por força
bruta de uma sociedade machista.

Hoje o texto não é poesia.
Odeio rima. Então, escarra...Limpa
dos lábios o resto de saliva que o
escândalo depositou, só por
revelia. Limpa.

Hoje é grito sem estrutura e sem
premissa.

Alinha minha escrita, se quiser...
Se for mulher.

Caso contrário. Não fode.


xxx


sem título
(Priscila Merizzio)

fui uma guria tão crédula na
candura alheia
o tio me punha em seu colo,
balançava meus fêmures
a calcinha de bichinhos trepidava
na espinheira-santa
no terreno baldio de sua virilha

em troca de carinhos lúdicos
mensalmente ele pagava
cestas básicas aos pais pobres

no fundo das igrejas
os eflúvios de mênstruos
adiantava-se na biografia
de outras pequenas


xxx


trinta e cinco dólares
(Lubi Prates)


um corpo que
estabelece o limite
com o outro

ser

um corpo que
é membrana e
ampara

a personalidade

um corpo que
guarda os escapes
da mente

assim como
o contrário:

tudo que acontece
no corpo chega
às camadas psicológicas.

como pensar um corpo
que é tocado
dominado
invadido

destruído:

é saber o corpo
de uma mulher:

mutilado
estuprado
vendido

na África,
todo clitóris
é cortado

para que
nenhuma mulher
sinta prazer.

na África, também
as meninas ainda meninas
apertam seus seios

para que pareçam
meninos e
não sejam invadidas.

como pensar um corpo

como saber o corpo
de uma mulher:

no Brasil,
trinta e três
homens
estupraram uma mulher.

ainda, no Brasil, a cada
onze minutos
uma mulher
é estuprada

mas não fala-se
a respeito
parece natural.

como pensar um corpo

como saber o corpo
de uma mulher:

a cada ano, dois milhões
de mulheres
são vendidas

cada mulher custa
trinta e cinco
dólares.

eu não estou
à venda mas

o que eu custo:
trinta e cinco
dólares.

como pensar um corpo

como saber o corpo
de uma mulher:

apenas carne.


xxx


sem título
(Priscilla Brito)

Fomos violentadas 35 vezes. 
30 homens, a morte pelo trabalho 
um tiroteio, casos de câncer 
e outra doença no prontuário. 

Pros nossos filhos, tiros 
Pras nossas mães, descrença 
Promessas não sobrevivem às 
filas de hospital 
à espera na fila dos ônibus 
incediados. 
Na Tv falam de outras formas de 
vida 
talvez porque não damos conta dessa. 

As lágrimas não são notas no 
rodapé das teses 
Os gritos não são audíveis nos 
jornais de domingo. 

Sobram desesperos 
No escândalo dos silêncios.


xxx


Via profundis: um anti-relicário
(Mariana Basílio)

Entre a verdade e os infernos
Dez passos de claridade
Dez passos de escuridão. ”
Hilda Hilst

Era a carnagem do sol
Sob os nossos pés.
Era a fressura da lua
Sobre os nossos ombros.

Quando o chão se abria
em pedaços de chuva.
O porém era portanto,
No desencanto que abraçavas.

Em tremores de vias sanguíneas.
Tu. Ave maior. Entre olhos.
Queimada de luz. Em nossa voz.
No chumbo ardil do Tempo.
Partido rosário de estrelas.

A suportar o impossível,
Dormias na fluidez do
Tempo. Nos sinais que
Cobriam o silêncio.
Dormias. E sob o teu
Sono havia um anjo.
Em anises arrozais.
Na cadência futura.
Sobre tua face.


xxx


sem título
Ana Horta

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos bebemos”
Paul Celan



Temos um rinoceronte preso ao pulso,
grunhindo palavras atrozes e ininteligíveis.
Mergulha no lodo e dele traz
raízes podres de sentenças desumanas.
Às vezes canta uma litania absurda,
trauteando a cacofonia do medo feita lei.
Depois, os carrascos desenrolam o novelo
incapaz de tecer, avesso à vida.
O novelo estéril do poder.
E prendem teus cabelos loiros, Maria
Teus dedos finos, Mariana
Tua voz suave, Isabel
Teus sonhos doces, Margarida
Teus pés de guerreira, Teresa
Teus filhos lindos, Joana
Tua boca canora, Juliana
Teus seios cheios, Madalena
Teu corpo só teu, Inês
Tuas pernas caminhadas, Matilde
Teu rosto tão belo, Sara
Teus quadris de dança, Graça
Teus joelhos redondos, Natália
Teus caracóis negros, Rita
Teus ombros suados, Elsa
Teus olhos brilhantes, Raquel
E tomam teu ventre só teu, Irmã.
A coruja solta-se na noite branca
e voa percorrendo a terra toda
com seu piar de desgosto.
Haverá palavras? Há alguma palavra?
Há. Muitas. Todas.
O grito da Terra inteira em fúria!


xxx


Estupro
(Isadora Barretto) 

A violência tem dessas coisas, 
bruta, pura, radical, invade com a 
força de liquidar palavra. Real, 
inelaborável, parte incapaz de 
dizer. Por ora, o 30-número virou 
coisa. Os trinta abstratos repente 
tomaram forma, e os vejo 
fantasmagóricos em tudo o que 
apontam os olhos, mesmo nas 
paredes brancas e inócuas, na 
água que bebo, na quietude de 
minha casa sem homens, agás 
maiúsculos ou minúsculos. Os 
vejo no espelho do meu 
banheiro, e olham-me, 
invadem-me e me possuem. Sou 
eu mesma, são todos os outros, 
um ser total. Oco, completo, 
pleno. A coisa me olha e me 
silencia, enquanto gesto único 
que posso - não-poder -, sinto. 
Animal. Estupefata, estúpida, estúprida.


xxx


sem saber dizer,
(Nina Rizzi)

olho a sarjeta mais suja
qualquer um podia saber que não há menina
nesse chão sem ter sido um rastro de violência

olho a sarjeta mais suja
e sei que não posso voltar a pisá-la
dormir sob dejetos, restos de obras e cimento

a menina pisada é ainda outra e outra
a menina quem poderá dizer se nunca mais sair
da sala de psicopatologia – isto que é

chama, pedra, mãos, iml
é fraco dizer alguém
é fraco dizer animal

é tão fraco dizer os rasgos de toda história

2.
uma sarjeta é o lugar onde se deixar uma menina
uma menina é um ser vivente, um ser vivente é
esse que se atravessa e mata e nunca existiu

não vou mais pisar a sarjeta de quando era uma menina
sob as mãos do pai, do outro e do outro
todo e qualquer desconhecido

um senhor me pergunta se foi um poema que se salvou
como sede de qualquer morada
o claustro, senhor, não pisar qualquer chão

ser encarcerada é um ótimo ataque, lê-se numa vala

3.
a rua lá de casa é um aguaceiro pronto
a pisar, cair, uma abertura pra o fim do mundo
o fim do mundo acontece

cinco vezes por hora a cada onze minutos
é quando um ser vivente se converte em menina na sarjeta
sob as mãos de um, qualquer um ou trinta que é mais que gente

mais que gente não é um monstro
um monstro é mito ou é beleza
não existe beleza quando uma menina está na sarjeta

eu nunca mais vou à sarjeta, mas olha:
está cheia a sarjeta de outras meninas
eu sou ainda outra, uma menina que não pode ser mais

atravessamento- violência-- fim---


xxx


Medo mulher
(Ana Thomazini)

Nascer mulher é ter fato, construção e procuração de permissão do medo.
Permissão medo que o corpo seja esburacado, invadido, mutilado, abandonado, quebrado, dilacerado, medido, carcomido os olhos, que as mãos se enruguem em pavor e velhice precoce, permissão de ser morta, permissão de ser casulo de puta abandonada, permissão de ter instituição para consolidar o controle fúnebre de tua vagina, saturnino peso sobre o sistema corpo, sobre teu sistema nome, sobre teu atributo de gênero feminino. A carne, a bruxa, a terra, o medonho, é mulher medo.
Que os punhos se ergam em luta solitária, de mulher em queda, de mulher em exílio, de mulher casta silenciada por manto sagrado, por fogueira, por medo do estrangeiro que habita em útero fendido, arrebentado, explorado feito caverna medo mítica, medo mística, medo mausoléu envidraçado.
Que os punhos se ergam e sejam os olhos revirados na terra dos dias, mulher que morde a mordaça, mulher castigada, mulher do feche as pernas e porte-se como deve ser mulher submissa, mulher assombrada, mulher virgem, mas puta na cama, mulher maquiada, montada, salto agulha, mulher sensual, sempre jovem, mulher Lolita, mulher novinha, mulher unhas vermelhas, mas o batom, vulgar essa cor, vadia. A mulher morde a coronha fria do pavor por descuido de existir.
Cale a boca, expurgo teu útero, teu sexo é praça pública, tua saliva, teu sangue, teu suor sempre valem menos, tua carne é pouca para 30 bocas que te carcomem dignidade, pulso, vida, história, futuro, passado, esperanças, medos. A mulher sobreviveu, a mulher teve 30 vezes a vida exumada, espumada entre rochas afiadas pelo medo. Mulher feito cadáver trôpego, feito pacote bêbado. Mulher não é gente não, mulher é elemento traiçoeiro. A mulher pecadora sobreviveu, encheu-se por 30 covas, conspurcada por 30 vermes. Mulher vertigem não viu 30 rostos, 30 rostos de punhal na vagina, útero apodrecido por 30 horrores machos.
Útero doa a via ao caminho da morte, o terror que purifica teu nome, mulher, é divino e feito de sangue. Ergo punhos em luta plena de nomes, em guerra cheia de ódio, mulher medo, minhas unhas perfuram os caminhos de placentas, seios e sorrisos opacos, sem manhã de sol, mulher é criança profanada no mistério dos 30 cacos, mulher é objeto emudecido que carrega o universo entre as pernas, mulher que em hemisférios hemorrágicos perfura a lógica 30 vezes, o demônio possui teu corpo em 30 formas de desalinho, o desafinado medo mulher, o apagado escuro de 30 violações. Mulher de 30 corpos violentos, de 30 nomes que gargalham teu nome, corpo, medo.