quarta-feira, 20 de abril de 2016

Mariana Imbelloni







































O fardo da flor

Cinza o dia em que ficou instituído
que toda bela, dócil e frágil
deve sempre ser a flor.

Deve chorar cada pétala caída
e toda rubra, mansa e sofrida
acatar inteiramente toda a dor.

Deve esperar placidamente ser colhida
toda meiga, ávida e sentida
resguardando na beleza seu calor.

Ah, que ledo engano se comete
ao crer que em seu lugar ela fragilmente permanece
entoando vossos hinos de louvor.

Não confundir doçura e docilidade
nem na calma longamente aprendida
uma ausência de luta com ardor.

Pois é na lida diária de reinventar-se
e seguir toda espinho, sonho e realidade
que ela transfigura o fardo de ser flor.


xxx


Da morte e outras permanências

Encontrei-te na rua ontem! Ou vi somente uma foto?
Não sei. Os bilhetes de sempre na gaveta me esquecem o lógico.
Veja bem, não te procuro mais nem na cozinha nem na sala
Mas mesmo a chaleira sozinha deixa refém um cheiro de café na casa.

E há ainda uma conta que vem. Um hábito que o porteiro mantém.
Todo um “quê” que perdeu seu “quem”.

Não é tanto uma saudade. Nem, talvez, uma dor de ausência.
Mas ah, como é estranho,
Que os vestígios da tua partida
só contem da tua permanência.

Dizem: é preciso de vez enterrá-lo.
Repetem: feche o ataúde, é tudo monumento.
Não veem? Todos os teus túmulos te retém.

(Nossos mortos não morrem porque nossos
Nossos mortos não morrem enquanto nossos
Nossos mortos são nossas esquinas.)


xxx


Sinastria

Há três nomes que me creem a mulher do seu destino:
o nome escrito na carta, nos astros,
o encontro só ainda sem data.
Há três nomes que me conjugam sempre futura
e, ainda assim, exata;
Como se mais que Norte eu fosse mapa.
Não sabem que meu desatino é, parada, despertencer ao chão,
desobedecer à verdade da rota por mim traçada.
Enquanto esperam em qual esquina ou rua me encontrarão,
Eu construo cidades.


xxx


Ode à incerteza

Eu, que sou feita de cantos,
temo um tanto o que é por demais reto.
É que nas esquinas escondo o encanto
dos passos perdidos em ruas desertas.
Se na curva a meta não lembro,
faço do andar uma aventura secreta;
bifurco a estrada conforme caminho,
esqueço a chegada e tortuo a régua.


xxx


Um jacaré que come flores

O mundo não é cinza. Nem é colorido.
É uma sereia contra o mar revolto.
É a enchente que fecunda o Nilo.
É um jacaré que come flores,
O terrível que do belo se alimenta.
Improvável harmonia.


xxx


Canção ao marinheiro

Sei que o acordo foi que eu fosse porto
esteio certo para tua embarcação errante
ancoradouro firme e distante
pronto a acolher-te quando viesses barco
mareado desse velejar constante, de mar e mundo farto

Sucede que o mesmo vento que te fez descrever outro arco
Soprou para além do teu caminho vário
Correu-me o cais deserto, levou-me vigas, causou estrago

Mas descobri contente que o chão que se desprende flutua ao largo

É que, diferente da beleza de velar por vasta frota
Ser porto seguro de navio algum é fardo

Por isso, não posso ser porto, pois ora parto
Largo amarras e desato a corda
Grito adeus e cruzo a imaginária porta
Até o mar, marinheiro




Mariana Imbelloni nasceu em 1989 no Rio, mas foi adotada por Minas e virou mistura dos dois. Feminista, formada em História, quase-formada em Direito, anda tentando estar no mundo através da pesquisa e da advocacia, mas é na poesia das terças no Corujão que ela mantém alguma (in) sanidade. Mantém o blog feminituraseliteralismos.blogspot.com

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