segunda-feira, 25 de abril de 2016

Ana Thomazini








































Passagem

Tenho por medo a perda das coisas que me arrependo depois.
Tenho por medo livros e livros que deixei passar, sem olhar a rota das nuvens antes.
Deixei roupas, corpos, vinhos, sapatos diversos e mais e mais livros dos quais não me recordo nenhum nome.
Deixei tantos anos e cores cardinais se frustrarem por baixo de minhas pálpebras
Que penso que o tempo irá borrar a vista turva por passeios em parques melancólicos de mim.
As doces memórias de uma nuvem borrada de chão estão retidas na retina dos tempos, dos tempos, dos tempos.
Estão retidas nos termos de uma música de outro pão, de outro papel, de outro amor.
Contém astros, verbos, presas castas, minerais ainda indecifrados pelos gestos.
Contém toda a brisa de um suave olhar esverdeado como sombra da árvore musgo sobre a terra batida.
Contém amanhecer alaranjado no qual retive em círculos concêntricos de frutas e flores o sorriso do teu nome.
As lembranças de um sorriso ígneo e forte, sincopado como letra de ventania que escreveu meu nome na tua delicada pureza.
As lembranças ígneas decifraram o meu nome na poeira das nuvens que contém brisas, astros e terra.
As mães de anos e cores mutáveis nomearam as mãos de outrora e represaram o medo das coisas que me arrependo depois.
A vida é larga, vasta, casta presa de poder forte e ígneo, muralha de tempos, muralha de musgo verde sobre a sombra da terra.
Arrependo-me de mencionar nomes, memórias, tantas imagens que retive por debaixo de cílios, lágrimas, glândulas, retina, pupilas, vastas, presas castas.
Calei perante aquela presença repleta de mutáveis tempos e astros, pois o suave olhar esverdeado permaneceu sem olhar livros e livros que tenho por medo e deixei passar.
Os melancólicos pesares fixos de meu peito permanecem em sincopado chão, em doces memórias que fustigam as formas amplas de meus nomes.
Há exata virtude no silêncio cativo e manifesto que suspende nuvens e astros sob meus dedos.
As partes doces das lembranças ígneas estão retidas na retina dos tempos, dos tempos, dos tempos.
Tenho por medo a perda das coisas que me arrependo depois.

Tenho por medo livros e livros que deixei passar, sem olhar a rota das nuvens antes.


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Água Doce

(A Gaston Bachelard)

Parece que o mar, ao espumar em minha pele,
Levou docemente meu sexo em revoada de peixes.
Seres marinhos habitaram meu nome, campos de trigo e de sonhos.
Tudo era devaneio, vontade esquecida, névoa de cardume anoitecido.
O esquecimento da espuma que chicoteava meus dentes, minhas vísceras em morada diurna,
Onde habitam Homens, Deuses e Heróis, era um caminho para a noite.
Viam-se contos de viajantes de velhos cargueiros, netunianos.
Em seres marinhos a espuma escondia toda a peste que habita a minha alma.
Junto ao líquido doce e feminino de teus lábios, escorria agora um pouco de areia sóbria.
O cheiro da água estava presente, era-se água, podia-se vestir corpo de água, ter olhos de água escura.
A água anoitece, teus sonhos vegetais estão suspensos até o amanhã.
Esperamos que o sol desbrave noites inteiras e mares salgados, 
Esperamos que trouxesse a luz na nossa língua materna.
Esperemos o Sol como deus que embala nossos corpos de olhos fechados.
Não se necessita abrigar passados, mas o tempo está também nas águas.
O tempo traz as marés, aquele líquido profundo, petroleiro, saturnino, obscurecido.
Há todo o esquecimento da água que escumou em meu sangue anoitecido.
Há todo o devaneio da tua língua materna sobre cargueiros frágeis e esquecidos.
Há todo um mar docemente embalado pela peste que habita meu sexo.
Há toda uma água vestida em corpo de viajantes, campos de trigo e de sonhos.
Há todo um cheiro de Homens e vísceras escondidos no obscurecido de teus olhos.


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Carapaça

Existem animais que se movem entre os séculos, desde tempos imemoriais. O caranguejo, o escorpião, lagartos, peixes, aves de rapina.
Estão ligados ao fio primitivo, àquilo que o homem sepultou durante milênios de civilização, sob impérios e pirâmides, sob cimento e areia, sob sistemas de irrigação e agricultura, através do domínio do fogo, através do domínio dos sentimentos.
Na animalização dos instintos e ditos insanos, na bestialização dos sentidos, polidos e regrados por reis e príncipes, por decretos e leis, através da crueldade do homem público, citadino.
A desmistificação do destino como serpente. A serpente como raiz; como radical dos seios, da vagina e do útero femininos. E dos sentimentos não silenciados. A figura meio selvagem associada ao primitivo e ao mesmo tempo à agilidade da inteligência e à capacidade de capturar tenazmente sua presa, podendo ser dotada de peçonha ou de garras.
Sistema Nervoso Central e a explicação purificada de suas ramificações.
Deus criou o Homem e o Demônio,
O Demônio criou Deus e o Homem,
E o Homem criou Deus e o Demônio,
Para perpetuar a dança colérica das marés e dos ventos solares, a dança das estrelas em nascimento e morte, o rodopiar dos planetas em torno de si mesmo e das tripas dos animais.
O crepúsculo, Lua, Júpiter e Vênus nos céus, aos olhos do mundo, aos olhos do sábio, aos olhos do velho, aos olhos do novo, sobre os auspícios deus e dos homens.
Humanos presos aos destinos das carnes próprias e dos sexos dos astros. Os animais de carapaça, os mais primitivos, são aquáticos. Nossas raízes estão embebidas no solo da terra, terrosa, fria e profunda. E nas águas, planetário lírico e libidinoso, nossas raízes estão nos musgos e líquens, estão no céu da boca de um riacho, no mangue, no mar, no córrego, nas cachoeiras, nas nuvens encharcadas de chuva cinzenta. 


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Cálcio e Estrelas
                                           Dedicado aos presos assassinados e 
desaparecidos no Chile, 
durante a ditadura militar de Pinochet,
 e às suas mulheres, filhas, irmãs 
que buscam restos de suas ossadas 
no deserto de Atacama.

O Sangue que ferve ossos desde o primeiro grito, forte, prematuro.
O galope ágil mistura folhas e galhos nos rostos pálidos.
O Vento quebra sons, indelicadamente, em barreira de areia e calcário.
Centelha de estrelas em olhos de cálcio.
Estrelas distantes, crepitar silencioso da nebulosa.
Labaredas e sombras em cavernas escuras, campos de morte.
Encontra-se somente o lodo de antigos sapatos, escritos e prantos.
Pedras, homens, carne fendida, gritos, estradas fervidas.
Silêncio, sangue que ferve ossos ancestrais, desaparecidos.
Cálcio dos ossos de todos os homens de estrelas fendidas.
Perdas, homens, ossos, galope silencioso de areia.
Rebentar de ventos em sóis do amanhã desaparecido.
Crepitar da barreira de areia em olhos de velhas mulheres que caminham.
Copo de vidro em mãos, quebra, estilhaça fragmentos de corpos de velhas mães, caminham.
O vento e as sombras fervem estrelas escuras, arenosas memórias, calcificadas.
Ancestrais, velhos ossos de baleia, crepitar ágil em olhos de cálcio, nebulosas areias-galáxias.
Pedras, sangue, horrores e guerras, caminham silentes em memória.
Velho copo de vidro em mãos de cálcio, desaparecidas.
Centelhas, galope, versos de estrelas, barreira prematura e forte.
Areia velha, desaparecida, uníssono vento, prematuro, forte. 


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Copo Emborcado

Parece-me que no momento eterno e vasto anterior ao passado,
Aquele momento de dia de chuva em céu cinzento,
Aquele momento em que se tentava calar a dor em céu dormente,
Aquele momento anterior à fuga do medo,
Exatamente era ali que se encontrava a perdição.
A perdição da mentira se encontrava emborcada num copo sobre a mesa.
A perversidade do momento anterior ao passado se dava em lapso surdo.
Nunca acompanharemos o caminho, o Destino, a luz que afugenta a alegria dos olhos.
O caminhar do gato em telhado antigo, sozinho, molhado, escorregadio, água de poço.
O fundo lodoso das mãos secas, os campos de trigo não cultivados, as alamedas em descaminhos.
Parece-me que quando o grito se torna alto, ele se torna surdo.
Parece-me que o desespero da noite, do copo emborcado, do sorriso estranho,
estão aprisionados no instante que precede o passado e o medo.
O engano de si próprio, a perda de si próprio, num copo emborcado contra o tempo.
Parece-me fustigado pelo terror, pelo solilóquio, por um sol demasiado acanhado.
Parece-me um humano incompleto, sem braço, com seu copo emborcado sobre o tempo,
Parece-me que estava antes do passado e do silêncio com alguma espécie de vinho tinto, denso, acalentador, de um tom magenta silencioso e vítreo.
Parece-me que o copo emborcado no passado de teus dedos e dias esperou a alucinação em estado sóbrio.
Esperou a alucinação em estado sóbrio e líquido, queimou marés, afagou rostos no poço lodoso do passado nos dedos.
Parece-me que aquele que indicava um céu cinzento estava anterior ao passado.
Exatamente era ali que o caminhar do gato não estava cultivado.
A perversidade do engano de si próprio tentava o desespero da noite, por um sol demasiado denso, tinto, acalentador, de um tom magenta silencioso e vítreo. 
Parece-me que telhado antigo se tentava vasto e eterno em lapso surdo.
Nunca acompanharemos o caminho, o Destino, a luz que afugenta a alegria dos olhos.


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Há de Ser

Vou-me embora e levarei somente a terra de meus cabelos.
Não desejo posses, bens, corpos, animais.
Há um cheiro agridoce no perfume do ar sereno, noturno.
Não há de haver muito, mas o que há de ser há de ser pouco.
Pouco de terra em minhas botas, léguas de tréguas e silêncios.
Botas de ar embebidas em travessias e matagais.
Basta de guerras, há somente aquela semente na árvore distante, onde seivas descansam.
Léguas de tuas botas em meu peito de ferro, calado, dolorido.
O que há de se querer, há de ser tempo, há de ser dura, qual nuvem no céu, paisagem de montanha.
Há léguas, botas, cansaços, minha boca seca, meus odores fortes, suor, sexo, não há de ser muito, há de ser pouco.
E aquela sede, que mata e que carcome alma, que despe dentes, que disputa coração, há de ser vento seco, há de ser vento canto.
O que há de ser botas, há de ser noite, há de ser olhos revirados, feito de cão morto na penumbra da casa.
No revoar das botas, que caminham léguas, minha boca seca, teus olhos revirados, feito cachorro sereno, noturno.
Não há de haver animais, bens, cheiros, há de ser somente léguas e matagais, travessias de tuas botas no meu suor, no teu sexo, há de ser duro, onde seivas agridoces descansam.
Nas guerras findas, basta, há cansaços em meu peito de terra, levo travessias na semente da árvore distante.
Nos perfumes levarei somente teus cabelos embebidos de nuvem, suor, paisagem de montanha, há de ser pouco. Há de ser pouco.





Ana Thomazini é formada em História e estudante de Astrologia. Alimenta paixões por montanhas, matagais e Minas Gerais. É Botafoguense por saudosismo, feminista por experiência, carrega uma personalidade tanto lunar quanto saturnina por Destino. E mantém um blog de poesias: http://avozdobardo.blogspot.com.br/


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