segunda-feira, 25 de abril de 2016

Ana Thomazini








































Passagem

Tenho por medo a perda das coisas que me arrependo depois.
Tenho por medo livros e livros que deixei passar, sem olhar a rota das nuvens antes.
Deixei roupas, corpos, vinhos, sapatos diversos e mais e mais livros dos quais não me recordo nenhum nome.
Deixei tantos anos e cores cardinais se frustrarem por baixo de minhas pálpebras
Que penso que o tempo irá borrar a vista turva por passeios em parques melancólicos de mim.
As doces memórias de uma nuvem borrada de chão estão retidas na retina dos tempos, dos tempos, dos tempos.
Estão retidas nos termos de uma música de outro pão, de outro papel, de outro amor.
Contém astros, verbos, presas castas, minerais ainda indecifrados pelos gestos.
Contém toda a brisa de um suave olhar esverdeado como sombra da árvore musgo sobre a terra batida.
Contém amanhecer alaranjado no qual retive em círculos concêntricos de frutas e flores o sorriso do teu nome.
As lembranças de um sorriso ígneo e forte, sincopado como letra de ventania que escreveu meu nome na tua delicada pureza.
As lembranças ígneas decifraram o meu nome na poeira das nuvens que contém brisas, astros e terra.
As mães de anos e cores mutáveis nomearam as mãos de outrora e represaram o medo das coisas que me arrependo depois.
A vida é larga, vasta, casta presa de poder forte e ígneo, muralha de tempos, muralha de musgo verde sobre a sombra da terra.
Arrependo-me de mencionar nomes, memórias, tantas imagens que retive por debaixo de cílios, lágrimas, glândulas, retina, pupilas, vastas, presas castas.
Calei perante aquela presença repleta de mutáveis tempos e astros, pois o suave olhar esverdeado permaneceu sem olhar livros e livros que tenho por medo e deixei passar.
Os melancólicos pesares fixos de meu peito permanecem em sincopado chão, em doces memórias que fustigam as formas amplas de meus nomes.
Há exata virtude no silêncio cativo e manifesto que suspende nuvens e astros sob meus dedos.
As partes doces das lembranças ígneas estão retidas na retina dos tempos, dos tempos, dos tempos.
Tenho por medo a perda das coisas que me arrependo depois.

Tenho por medo livros e livros que deixei passar, sem olhar a rota das nuvens antes.


xxx


Água Doce

(A Gaston Bachelard)

Parece que o mar, ao espumar em minha pele,
Levou docemente meu sexo em revoada de peixes.
Seres marinhos habitaram meu nome, campos de trigo e de sonhos.
Tudo era devaneio, vontade esquecida, névoa de cardume anoitecido.
O esquecimento da espuma que chicoteava meus dentes, minhas vísceras em morada diurna,
Onde habitam Homens, Deuses e Heróis, era um caminho para a noite.
Viam-se contos de viajantes de velhos cargueiros, netunianos.
Em seres marinhos a espuma escondia toda a peste que habita a minha alma.
Junto ao líquido doce e feminino de teus lábios, escorria agora um pouco de areia sóbria.
O cheiro da água estava presente, era-se água, podia-se vestir corpo de água, ter olhos de água escura.
A água anoitece, teus sonhos vegetais estão suspensos até o amanhã.
Esperamos que o sol desbrave noites inteiras e mares salgados, 
Esperamos que trouxesse a luz na nossa língua materna.
Esperemos o Sol como deus que embala nossos corpos de olhos fechados.
Não se necessita abrigar passados, mas o tempo está também nas águas.
O tempo traz as marés, aquele líquido profundo, petroleiro, saturnino, obscurecido.
Há todo o esquecimento da água que escumou em meu sangue anoitecido.
Há todo o devaneio da tua língua materna sobre cargueiros frágeis e esquecidos.
Há todo um mar docemente embalado pela peste que habita meu sexo.
Há toda uma água vestida em corpo de viajantes, campos de trigo e de sonhos.
Há todo um cheiro de Homens e vísceras escondidos no obscurecido de teus olhos.


xxx


Carapaça

Existem animais que se movem entre os séculos, desde tempos imemoriais. O caranguejo, o escorpião, lagartos, peixes, aves de rapina.
Estão ligados ao fio primitivo, àquilo que o homem sepultou durante milênios de civilização, sob impérios e pirâmides, sob cimento e areia, sob sistemas de irrigação e agricultura, através do domínio do fogo, através do domínio dos sentimentos.
Na animalização dos instintos e ditos insanos, na bestialização dos sentidos, polidos e regrados por reis e príncipes, por decretos e leis, através da crueldade do homem público, citadino.
A desmistificação do destino como serpente. A serpente como raiz; como radical dos seios, da vagina e do útero femininos. E dos sentimentos não silenciados. A figura meio selvagem associada ao primitivo e ao mesmo tempo à agilidade da inteligência e à capacidade de capturar tenazmente sua presa, podendo ser dotada de peçonha ou de garras.
Sistema Nervoso Central e a explicação purificada de suas ramificações.
Deus criou o Homem e o Demônio,
O Demônio criou Deus e o Homem,
E o Homem criou Deus e o Demônio,
Para perpetuar a dança colérica das marés e dos ventos solares, a dança das estrelas em nascimento e morte, o rodopiar dos planetas em torno de si mesmo e das tripas dos animais.
O crepúsculo, Lua, Júpiter e Vênus nos céus, aos olhos do mundo, aos olhos do sábio, aos olhos do velho, aos olhos do novo, sobre os auspícios deus e dos homens.
Humanos presos aos destinos das carnes próprias e dos sexos dos astros. Os animais de carapaça, os mais primitivos, são aquáticos. Nossas raízes estão embebidas no solo da terra, terrosa, fria e profunda. E nas águas, planetário lírico e libidinoso, nossas raízes estão nos musgos e líquens, estão no céu da boca de um riacho, no mangue, no mar, no córrego, nas cachoeiras, nas nuvens encharcadas de chuva cinzenta. 


xxx


Cálcio e Estrelas
                                           Dedicado aos presos assassinados e 
desaparecidos no Chile, 
durante a ditadura militar de Pinochet,
 e às suas mulheres, filhas, irmãs 
que buscam restos de suas ossadas 
no deserto de Atacama.

O Sangue que ferve ossos desde o primeiro grito, forte, prematuro.
O galope ágil mistura folhas e galhos nos rostos pálidos.
O Vento quebra sons, indelicadamente, em barreira de areia e calcário.
Centelha de estrelas em olhos de cálcio.
Estrelas distantes, crepitar silencioso da nebulosa.
Labaredas e sombras em cavernas escuras, campos de morte.
Encontra-se somente o lodo de antigos sapatos, escritos e prantos.
Pedras, homens, carne fendida, gritos, estradas fervidas.
Silêncio, sangue que ferve ossos ancestrais, desaparecidos.
Cálcio dos ossos de todos os homens de estrelas fendidas.
Perdas, homens, ossos, galope silencioso de areia.
Rebentar de ventos em sóis do amanhã desaparecido.
Crepitar da barreira de areia em olhos de velhas mulheres que caminham.
Copo de vidro em mãos, quebra, estilhaça fragmentos de corpos de velhas mães, caminham.
O vento e as sombras fervem estrelas escuras, arenosas memórias, calcificadas.
Ancestrais, velhos ossos de baleia, crepitar ágil em olhos de cálcio, nebulosas areias-galáxias.
Pedras, sangue, horrores e guerras, caminham silentes em memória.
Velho copo de vidro em mãos de cálcio, desaparecidas.
Centelhas, galope, versos de estrelas, barreira prematura e forte.
Areia velha, desaparecida, uníssono vento, prematuro, forte. 


xxx


Copo Emborcado

Parece-me que no momento eterno e vasto anterior ao passado,
Aquele momento de dia de chuva em céu cinzento,
Aquele momento em que se tentava calar a dor em céu dormente,
Aquele momento anterior à fuga do medo,
Exatamente era ali que se encontrava a perdição.
A perdição da mentira se encontrava emborcada num copo sobre a mesa.
A perversidade do momento anterior ao passado se dava em lapso surdo.
Nunca acompanharemos o caminho, o Destino, a luz que afugenta a alegria dos olhos.
O caminhar do gato em telhado antigo, sozinho, molhado, escorregadio, água de poço.
O fundo lodoso das mãos secas, os campos de trigo não cultivados, as alamedas em descaminhos.
Parece-me que quando o grito se torna alto, ele se torna surdo.
Parece-me que o desespero da noite, do copo emborcado, do sorriso estranho,
estão aprisionados no instante que precede o passado e o medo.
O engano de si próprio, a perda de si próprio, num copo emborcado contra o tempo.
Parece-me fustigado pelo terror, pelo solilóquio, por um sol demasiado acanhado.
Parece-me um humano incompleto, sem braço, com seu copo emborcado sobre o tempo,
Parece-me que estava antes do passado e do silêncio com alguma espécie de vinho tinto, denso, acalentador, de um tom magenta silencioso e vítreo.
Parece-me que o copo emborcado no passado de teus dedos e dias esperou a alucinação em estado sóbrio.
Esperou a alucinação em estado sóbrio e líquido, queimou marés, afagou rostos no poço lodoso do passado nos dedos.
Parece-me que aquele que indicava um céu cinzento estava anterior ao passado.
Exatamente era ali que o caminhar do gato não estava cultivado.
A perversidade do engano de si próprio tentava o desespero da noite, por um sol demasiado denso, tinto, acalentador, de um tom magenta silencioso e vítreo. 
Parece-me que telhado antigo se tentava vasto e eterno em lapso surdo.
Nunca acompanharemos o caminho, o Destino, a luz que afugenta a alegria dos olhos.


xxx


Há de Ser

Vou-me embora e levarei somente a terra de meus cabelos.
Não desejo posses, bens, corpos, animais.
Há um cheiro agridoce no perfume do ar sereno, noturno.
Não há de haver muito, mas o que há de ser há de ser pouco.
Pouco de terra em minhas botas, léguas de tréguas e silêncios.
Botas de ar embebidas em travessias e matagais.
Basta de guerras, há somente aquela semente na árvore distante, onde seivas descansam.
Léguas de tuas botas em meu peito de ferro, calado, dolorido.
O que há de se querer, há de ser tempo, há de ser dura, qual nuvem no céu, paisagem de montanha.
Há léguas, botas, cansaços, minha boca seca, meus odores fortes, suor, sexo, não há de ser muito, há de ser pouco.
E aquela sede, que mata e que carcome alma, que despe dentes, que disputa coração, há de ser vento seco, há de ser vento canto.
O que há de ser botas, há de ser noite, há de ser olhos revirados, feito de cão morto na penumbra da casa.
No revoar das botas, que caminham léguas, minha boca seca, teus olhos revirados, feito cachorro sereno, noturno.
Não há de haver animais, bens, cheiros, há de ser somente léguas e matagais, travessias de tuas botas no meu suor, no teu sexo, há de ser duro, onde seivas agridoces descansam.
Nas guerras findas, basta, há cansaços em meu peito de terra, levo travessias na semente da árvore distante.
Nos perfumes levarei somente teus cabelos embebidos de nuvem, suor, paisagem de montanha, há de ser pouco. Há de ser pouco.





Ana Thomazini é formada em História e estudante de Astrologia. Alimenta paixões por montanhas, matagais e Minas Gerais. É Botafoguense por saudosismo, feminista por experiência, carrega uma personalidade tanto lunar quanto saturnina por Destino. E mantém um blog de poesias: http://avozdobardo.blogspot.com.br/


quarta-feira, 20 de abril de 2016

Mariana Imbelloni







































O fardo da flor

Cinza o dia em que ficou instituído
que toda bela, dócil e frágil
deve sempre ser a flor.

Deve chorar cada pétala caída
e toda rubra, mansa e sofrida
acatar inteiramente toda a dor.

Deve esperar placidamente ser colhida
toda meiga, ávida e sentida
resguardando na beleza seu calor.

Ah, que ledo engano se comete
ao crer que em seu lugar ela fragilmente permanece
entoando vossos hinos de louvor.

Não confundir doçura e docilidade
nem na calma longamente aprendida
uma ausência de luta com ardor.

Pois é na lida diária de reinventar-se
e seguir toda espinho, sonho e realidade
que ela transfigura o fardo de ser flor.


xxx


Da morte e outras permanências

Encontrei-te na rua ontem! Ou vi somente uma foto?
Não sei. Os bilhetes de sempre na gaveta me esquecem o lógico.
Veja bem, não te procuro mais nem na cozinha nem na sala
Mas mesmo a chaleira sozinha deixa refém um cheiro de café na casa.

E há ainda uma conta que vem. Um hábito que o porteiro mantém.
Todo um “quê” que perdeu seu “quem”.

Não é tanto uma saudade. Nem, talvez, uma dor de ausência.
Mas ah, como é estranho,
Que os vestígios da tua partida
só contem da tua permanência.

Dizem: é preciso de vez enterrá-lo.
Repetem: feche o ataúde, é tudo monumento.
Não veem? Todos os teus túmulos te retém.

(Nossos mortos não morrem porque nossos
Nossos mortos não morrem enquanto nossos
Nossos mortos são nossas esquinas.)


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Sinastria

Há três nomes que me creem a mulher do seu destino:
o nome escrito na carta, nos astros,
o encontro só ainda sem data.
Há três nomes que me conjugam sempre futura
e, ainda assim, exata;
Como se mais que Norte eu fosse mapa.
Não sabem que meu desatino é, parada, despertencer ao chão,
desobedecer à verdade da rota por mim traçada.
Enquanto esperam em qual esquina ou rua me encontrarão,
Eu construo cidades.


xxx


Ode à incerteza

Eu, que sou feita de cantos,
temo um tanto o que é por demais reto.
É que nas esquinas escondo o encanto
dos passos perdidos em ruas desertas.
Se na curva a meta não lembro,
faço do andar uma aventura secreta;
bifurco a estrada conforme caminho,
esqueço a chegada e tortuo a régua.


xxx


Um jacaré que come flores

O mundo não é cinza. Nem é colorido.
É uma sereia contra o mar revolto.
É a enchente que fecunda o Nilo.
É um jacaré que come flores,
O terrível que do belo se alimenta.
Improvável harmonia.


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Canção ao marinheiro

Sei que o acordo foi que eu fosse porto
esteio certo para tua embarcação errante
ancoradouro firme e distante
pronto a acolher-te quando viesses barco
mareado desse velejar constante, de mar e mundo farto

Sucede que o mesmo vento que te fez descrever outro arco
Soprou para além do teu caminho vário
Correu-me o cais deserto, levou-me vigas, causou estrago

Mas descobri contente que o chão que se desprende flutua ao largo

É que, diferente da beleza de velar por vasta frota
Ser porto seguro de navio algum é fardo

Por isso, não posso ser porto, pois ora parto
Largo amarras e desato a corda
Grito adeus e cruzo a imaginária porta
Até o mar, marinheiro




Mariana Imbelloni nasceu em 1989 no Rio, mas foi adotada por Minas e virou mistura dos dois. Feminista, formada em História, quase-formada em Direito, anda tentando estar no mundo através da pesquisa e da advocacia, mas é na poesia das terças no Corujão que ela mantém alguma (in) sanidade. Mantém o blog feminituraseliteralismos.blogspot.com

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Marieli Adriani Becker





















O silêncio tem compridas unhas e é
um destruidor de tecido humano:
as costas dos homens e as bocas cheias
de distância são vítimas de mãos nervosas
e tristes.

A noite expele suas pedras nos rins dos magoados.

Segredo é aquilo que não se pode dizer nem a si mesmo,
porque não existe a boca, nem o verbo, ou sequer 
a dignidade.


O corpo protege a mentira quando a fantasia
é um arbusto desregulado nas arestas
e nas raízes.


A palavra enterra o sonho
com suas paredes de concreto
e suas frígidas dobraduras.


Pontes cheirando a álcool 
incêndios, copos vazios,
o delírio cujo rosto nunca aparece 
na imagem que o espelho devolve.


xxx


Entendi que não posso enlouquecer: escrevo. Para cada delírio invento um motivo, e para cada motivo um culpado: sou religiosa ao extremo: canto hinários de morte disfarçados: a última palavra do poema abrirá crateras: túmulos carregados com o choro de um cachorro faminto: ele sempre está faminto.

Para cada verso há um lugar no qual eu me calo mais fortemente.

Entre a loucura e a realidade existe a linha que repito: sou religiosa ao extremo: rezo antes de dormir, sempre sonho que o inferno me leva. Meu jantar é composto de pão e vinho, mais vinho, muito mais, e também incluo na reza um altar para o álcool: esse instrumento de abrir os sonhos como se abrem as latas de sardinha, e descobri-los com olhar de peixe, igualmente mortos, igualmente apertados em metais baratos.

No fim de cada palavra há morte, um instante de traição.

No final da palavra há um corredor sem portas. No final do poema o espelho se parte e voltamos ao silêncio da ausência de imagem: plantamos as patas no lugar para o qual não há mais outro lugar para ir: isso é o desespero do fim do poema. Inventamos outros, e mais outros, como não fossem degraus idênticos daquele prédio enorme cujas janelas dão para o lado de dentro, apenas, e terrivelmente para o lado de dentro onde os elevadores param em andares inundados de mágoa. Não temos pernas para as escadas, não temos as patas do cavalo.

Ocupa-me até a morte como um observador de gaivotas.

O choro do cachorro confunde o choro da gaivota e ela diz simplesmente que não se ocupará afetivamente do teu olhar pousado na janela enquanto foge de todos os lugares existentes. A gaivota foge sempre, não importa em qual montanha ela esteja. A ti, observador enterrado em estranhas arquiteturas cujas janelas não dão para o lado de fora, resta observar a fuga e sonhar que ela encontre a cobertura de qualquer lugar existente. Não estranhe o vento gelado quando ela canta: o elevador está parado no meio da uma montanha e tu não pode usá-lo.

Apegar-se ao sonho é empurrar a última palavra do poema.

Ocupar-me até a morte com os mesmos dizeres. Fingir que são novos, fingir que eles invadiram novos pedaços de corpo. Mentir que eles continuaram após a última palavra quando todos me viraram as costas. A última letra é um coração jogado fora, a última letra é uma promessa falida, o choro de um cachorro faminto: no poema o elevador para nos andares errados e tu desce na montanha e não há nada nela.


xxx


A escuridão penetra silenciosa e
violenta pelas fissuras dos ossos,
carrega segredos de melancolia
que se espalham na correnteza
do sangue.
 
O gesto e a fala são restos de
acidentes.

O silêncio costura a pele quando
a palavra se vestiu de
lâmina e dúvida e também de
recusa.

Os vidros do inconsciente trincam mas nunca se partem.

Durante o sono estes vidros desmancham
como flores numa interminável chuva.
Encharcam suas raízes, levam
a água pelos caules, buscando encontrar o
afogamento iminente, murcham sozinhas.

O outono leva a folha da árvore e planta o
desengano nos pátios das casas sem dono.

Uma única luz invade o quarto pelas frestas
Sempre há frestas esquecidas abertas, sempre há
persianas quebradas num apartamento da infância.

A luz é rancorosa e prateada, e
serve como ponto de apoio para
a loucura.

Quando a lua invade o quarto, na madrugada,
sem te desejar uma boa noite, ela te encontra
vomitando delírios pelo chão, sem que ninguém
te erga os cabelos.


xxx


essa linguagem rasteja como uma
roda xamã inconsciente
grita como se chamasse um 
espírito em chamas 
de volta a si
essa linguagem massacra 
a si mesma
no canto do corpo
como animais desorientados
na fumaça, essa bruxaria
da fala - de buscar nos espíritos
água para apagar incêndios.


xxx


Eu sentei por horas na frente desse espelho
eu sentei por horas na frente desse corpo
eu sentei por horas na frente da tua impotência
eu fui buscar um cigarro em mim mesma e nunca mais voltei
eu sentei por horas na frente dessa obviedade
eu fui buscar uma coisa pequena que pudesse te queimar
como uma caixa de fósforos para o cigarro que me fez sumir
daqui e eu continuo sentada por horas sem vestígios
dos meus cabelos longos, do meu perfume de mulher
esforçada, a sala contaminada pelos meus desejos venéreos 
todos culpados, todos vermelhos, todos inconfessáveis
a minha vontade de atear fogo na gente enquanto eu tava 
sentada em você, tão nua tão sem nicotina tão sem propósito
para aquele fogo, você tão silencioso como um homem que fuma 
mas que não sumiu nunca sumiu daqui.


xxx


Há quem diga que as manhãs
são figuras mitológicas distantes,
abafando, com suas asas douradas,
os sonhos,

Há quem pense no sol como um
catalisador de esquizofrenias.

A cidade também se põe de pé
porque a luz constrange e
clarifica as feridas.

Não temos tempo já que chove
paciência, a eternidade tem os
olhos da morte.

Deve ser mesmo assustador perceber
quando noite, a nudez do corpo
porque é escuro e podemos.


xxx


Não grite pânico perto das flores,
elas ainda estão crescendo.
Veja quantas cores são vivas e indiferentes
ao teu parir de poemas, porque toda melancolia
dissipa os enigmas como quem prorroga.
Fale bem baixo condizendo com a tua
face de mulher assombrada pelos olhos
estáticos dos animais que respiram mal,
daqueles cujos pulmões abrem fendas
de luz em cima das palavras - o sol também
pode ser imitado, ele pode até fazer calor
à noite. Não grite pânico perto dos poemas
eles podem perceber a sua natureza maligna
e a melancolia então derrubará planetas inteiros
só com essa respiração de quem abre fenda,
de quem olha estático, de quem faz réstia,
de quem cresce sem pausa ou motivo.


xxx


as palavras também envelhecem e morrem
às vezes sofrem acidentes
às vezes são luas passando frio
os planetas dormem porque o silêncio é infinito
há imagens que fedem como uma estrela queimada
morrer também é uma promessa

a raiz da planta conhece a própria cova.
cresce assombrada

pranto de acordar as plantas
pranto de desencontrar planetas
pranto de ter nas mãos a queimadura da estrela

às vezes as palavras respiram
pneumáticas
às vezes elas têm medo do escuro do universo
há imagens que cheiram a canibalismo
às vezes as palavras são cristais
bulímicos

pranto de distender madrugada.





Marieli Adriani Becker, nascida em 86, em Passo Fundo RS, estudante de psicologia, mantém o blog http://hideinbriarcliff.blogspot.com.br/




domingo, 3 de abril de 2016

Taís Bravo







































Essa cidade:

O exílio é a umidade que sustenta o céu desta cidade. O exílio é São Conrado às 16:57 de uma sexta-feira. O exílio é te ver atravessando a rua como uma terra conquistada e em extinção. O exílio é não encontrar as memórias que guardei em cada mesa do nosso bar. O exílio é todo verão começar o mesmo de novo. O exílio é passar purpurina como uma veste de guerra. O exílio é o quarto dos pais em seu segredo original. O exílio é estar indiferente ao pôr do sol visto da Urca. O exílio é passar por aquela porta com gosto de ruína. O exílio é nunca mais arriscar a Baía de Guanabara. O exílio é o Bar da Cachaça. O exílio é se aproximar lentamente de cada montanha e não entender nada. O exílio é depois de uma certa idade as pessoas não mudam mais. O exílio são nossos diplomas e suas expectativas. O exílio é aquela tese que virava as dores como lajes. O exílio é uma fotografia esquecida em um dispositivo móvel em que uma noite - com a ajuda de um aplicativo - emerge transfigurada em armadilha. O exílio são as rosas rejeitadas por Iemanjá. O exílio é a janela com vista para um rio morto. O exílio é encontrar o equilíbrio estático que sela os poros para ser enfim independente das fases da lua. O exílio é minha pílula anticoncepcional. O exílio é sempre voltar pra casa. O exílio não são duas linhas. O exílio não é um lugar. O exílio é o começo daquele dia em que sem saber o motivo só assenti. O exílio parece áspero e é precisamente onde se pode descobrir. O exílio só termina quando se sabe que não tem fim. O exílio te implora para não olhar e quando você encara de fato está. O exílio é buscar saídas.


xxx



a civilização ocupa
todos os lugares
de morte
com filtros
castelos fortes ruínas
puídos sítios
entre outras obras
à branca beleza imposta
em leves trilhos
até o MAR
ou ao Amanhã
a história se corta
em anedota
.
em uma esquina bate
a onda amarga
na língua tem dias
que é inevitável
aquele 1%:
unha que lateja
estômago que arranca
sangue que mancha
tua calcinha que entra entre
as linhas em extinção
os astros no comando
a TVBus que informa
translação de pontos
a inconstância deve ser
o excesso de água
no mapa da cidade
teu tamanho não é
nem 1%
.
fora dos planos
se exalta o resto
tudo já está em fim
.
minúscula
tem dias que é
inevitável ser
eterna num mergulho
descobre em matéria
a memória da origem:
areia que rebenta da montanha
.
os nomes completos
são a primeira lâmina


xxx


o motorista me responde que sim
é direto
é uma satisfação
poupar alguns minutos
em trânsito
tenho um pé na escada e outro no chão
na hora que pego o impulso
reparo
a Central molhada
sem proteção
nesse instante desejo:
ser amada aqui
nesse lugar
nessa língua
pela vibração em que respondo
obrigada
e saco meu Bilhete Único
uma sério de gestos
que domino
sem hesitar
tento te ver
nesse contexto
desarmado
o amor talvez seja
sempre quebrar
os hábitos
no entanto sustentam 
um rumo disponível 
às vezes a repetição
não é
monotonia 
não é 
falta
pode ser 
um guia
pode ser
desenhar um mapa
com a carne
dos dedos 
toco as teclas
sem enxergar
suas letras formo
palavra 
passos 
de dança 
memória 
física
a história
é um sopro encarnado
entre as paredes e línguas e peles
ser amada aqui
em uma cidade que exige
que sua
que avacalha
que muda
as linhas
a cada 3 meses
e sufoca a rotina
e gargalha da estabilidade
quando subo no 315 Central – Recreio é uma vitória 
porque sabe-se lá até quando 
sabe-se lá quantas novas linhas 
a extinguir narrativas
então quando subo no 315 Central – Recreio
enxergo que grande parte do meu ser não é
feito de sublimações e essencias
grande parte do meu ser se faz
entre essas linhas
que traço e apago diariamente
pela cidade
Alvorada – Del Castilho – Cinelândia
Rua da lapa – Cinelândia – Central – Recreio
grande parte do meu ser é
deslocamento
automático
como meus dedos
a dançar palavras
sobre as teclas 
quase porque às vezes faísca
espera trânsito barracos 
e desencontros
hoje no 614 Alvorada – Del Castilho 
vi um rapaz confuso e o motorista indisposto
vi uma garota se aproximar talvez oferecendo ajuda
eles conversam claramente ele não é daqui
ela parece mais certa
do que faz imagino se
pela ajuda vão iniciar um contato trocar contato marcar uma cerveja começar algo
então entendo que na verdade já existe são algo
um casal nesses tempos nunca se sabe o termo certo mas são
algo ela só foi ajudar depois de um tempo porque está magoada
com algo depois dos minutos em que se explicam
passam o resto da viagem em silêncio
um ao lado do outro 
pelo silêncio compartilhado vejo que são
algo
na hora de descer a fila se forma com antecedência
ele se aproxima muito com indiferença
ela permite
ela desce em passos rápidos ela sabe
pra onde ir
ele segue afobado
caso a perca não sabe
para onde seguir em Del Castilho 
eles ficam na fila para comprar um bilhete
eu sigo em passos de quem sabe o caminho mais do que gostaria 

então quando subi com certeza no 315 –EXPRESSO
a repetição do impulso
sem hesitar
o amor é sempre
quebrar hábitos
se fazer estrangeira
em terras sem raiz
é atalho
no mais íntimo
dos movimentos 
guardados de cor
entre a língua a pele e as paredes
desejo 
laço que faz
dos pontos
de passagem
escolha


xxx



eu lembro de esbarrar com você
quando brigava com outro garoto
que acabou se tornando meu amigo
próximo ou não tanto
(por que quem tem amigos próximos aos 25 anos?)
ali era um ponto de ônibus
desses que desapareceu
de um dia para o outro
a linha do ônibus também mudou
de 2016 para 318
e o ponto mudou
outras três vezes
até se tornar Central

eu pareço ser a única
que carrega
esses rearranjos
em cada trajeto
um novo garoto
passeia
pelas minhas coxas
se encontra as rasuras
em alto relevo

quando atravesso
temendo facadas
a Rio Branco
ainda adormecida
talvez já
desponte
a próxima linha

por enquanto
faço sinal
à casca
que arranco
só para deixar
sua marca


xxx



eu nem gostava de Wes Anderson
assim como eu
não gostava de você
à primeira vista
alguma coisa acontece quando
a Nico começa a cantar
em um cinema em que
— supostamente —
Almodóvar já chorou
assim como eu
naquela cena
sangue começa a jorrar
alguma coisa acontece quando
você é terrivelmente gentil
me deixa em dúvida
de onde sou
ser legal é dar mole
mas você não
você apenas é
alguma coisa acontece quando
eu até te deixo abrir portas
eu esqueço aquela cena
eu esqueço pra quem escrevia
eu esqueço que fui
alguma coisa acontece quando
em seu rosto marca
reconhecimento inédito
e eu não só posso
como quero te dizer
que sim
alguma coisa acontece quando
falamos sobre o medo
de voar e você finalmente
se inclina e eu tomo fôlego
e alguma coisa acontece quando
Wes Anderson continua chato
rodando para olhos fechados
graças a deus


xxx


tenho te lançado em todos
os rios me atravessam
como um sacrifício
passo horas
mirando águas
sem promessa
repito a sabedoria
de tão gasta se faz clichê
precisamente sua verdade:
tudo se gasta
faltam 317 dias para tuas células nunca conhecerem as minhas
um eclipse já me trouxe de volta
ainda que não queira
o conforto daquela pele
ser áspera é um exercício
me mantém
em outro cenário
se me limpam as águas,
a origem faz porto
em meu sotaque
a memória, insistência
em conversas de bar
cerveja espreme os poros
em todo mundo
não há solução
encaro as águas
sem tempo ou nome
gasto a fita das palavras
não ouso ocupar outras línguas
com a mesma dor
só abandonar
sem saber
depois de se pôr
pode vir
a noite ou não
encaro essas águas

como quem faz casa
no topo de um vulcão
dorme e acorda
e descobre muito
mais que a paz





Taís Bravo é escritora e tradutora. Colabora com a Editora Alpaca e as revistas Capitolina e Ovelha. Criou, junto com Natasha Ísis, a newsletter colaborativa Mulheres que Escrevem. Gosta mais de ir à praia do que de existir.