segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Estela Rosa























Ilustração: Ale Sáenz




Cortada em duas

Mesmo depois
de grande crescida
enorme em si as pernas
os braços com pelos
quadril largo ancas
ainda me pego contente
admirada que só
olhando a chuva
que cai do nada nos tetos

Abismada
com a dimensão das coisas e a largura
das pernas e cintura desencaixada
caindo enviesadas feito
chuva de março pela janela
fico parada enquanto me atravesso
com aquele ar que vem direto
cortando a janela em duas
como cortaram em duas minhas pernas

Encaro a chuva e as pernas
como quem encara o abismo

Eu olho para ela
Ela me olha de volta

Estar abismada seria
uma questão fé?

Não

O abismo é uma mulher na rua
parada no meio da chuva confusa
se atravessa ou
se é atravessada.

  
 xxx


Um caroço de abóbora japonesa

Aprendi
que se você joga um saco de terra no vaso
é incontrolável que surjam pequenas folhas

plantas sem nome
diria minha mãe
é tudo mato

mas resolvi jogar terra em um vaso
e ali algumas sementes que iam pro lixo

não me preocupei
nada do que planto dá
não tenho interesse em fertilidades

mas aí brotou por entre o lixo
uma folhinha

puxei o mato
mas ele saía do caroço da abóbora japonesa
do purê de semana passada

ela ali crescendo
orientalíssima em meu vaso de lixo orgânico
minha última tentativa de gratidão

com o broto na mão
fiquei pensando nos mestres japoneses
e naqueles samurais de coquezinho
naquelas moças com pés cortados
sapatos de madeira
nos budas de porcelana

e aquela folha ali brotando

então é isso, não dá
não sei lidar com vidas pacientes
com essa folha japonesa
delicada rompendo o lixo
feito um hexagrama de i-ching
me ensinando a brotar

mas não dá
é poesia demais pra mim
logo eu que não sei meditar


 xxx


Chá de Camomila

Quando pequena, existia a tara
por crianças Johnson&Johnson
que exibiam seus cabelos loiros
volumosos
cheios de propaganda na tv
por conta disso, as mandingas para cabelos loiros
me eram constantes

Eu não sabia que era pecado não ser loira

Naquela época
minha mãe exorcizava os piolhos
e o cabelo que escurecia a passos largos

na mandinga,
em cima da cama
ela polvilhava neocid
e depois me lavava com chá de camomila
e depois shampoo Johnson&Johnson para cabelos claros

Abafava os piolhos e meu cabelo acastanhado

Hoje, depois de anos
depois das desilusões com a mandinga
tenho pavor ao loiro e ao chá de camomila

agradecida
só não me queixo dos piolhos
que foram embora cedo
junto com a inocência dos bebês Johnson&Johnson
e meus cabelos loiros


xxx


Attention please, Ms. Freitas

Se fosse eu a moça da voz do aeroporto
Diria aos passageiros
Que o traje perfeito para o voo
É calça legging e um pouco de empáfia
Portar aquela cara de quem faz isso
Todo dia

(E também uma pastinha de couro embaixo do braço
Pra conseguir um respeito bem heterossexual classe média)

Se eu fosse a moça da voz do aeroporto
Pararia no meio do aviso
Pra dizer que tudo bem aquela dor de barriga de nervoso
Mas que o banheiro do avião é horrível
E que a dose de bom ar custa R$10,00

Se eu fosse a moça da voz do aeroporto
Cantaria aquela música da Lauryn Hill
Strumming my pain with his finger
Killing me softly with this song
Telling my whole life with his words
Com a minha voz de verdade, ruim pra cantar
Acho importante saber
Que tem corpo
A voz da moça do aeroporto

Se eu fosse a moça da voz do aeroporto
No meio do anúncio do nome da Senhora Freitas
Faria um retrato falado
"Imagino a Senhora Freitas
Segurando calmamente seu café
Lendo um livro comprado na banca de jornal
(ela nunca leva livros, livros são pesados)
Relaxada com apenas outro sobrenome na cabeça
Ela não gosta do nome do marido
Doutor Freitas, aquele inválido"

Se eu fosse a moça da voz do aeroporto
Seria fácil
A certeza de que não passo da voz do aeroporto
Esperaria chegar Glória Maria
Pra me entrevistar
E dizer que não há mistério algum
Que um dia as vozes das moças do aeroporto
Serão substituídas por vozes de moças de celular
"É a modernidade chegando"

Mas aí seria outro Globo Repórter
E eu preciso trabalhar.

"Attention please, Ms. Freitas".


xxx


Reflexos em banheiros públicos

O espelho que me traduziu
pela primeira vez era
pintado em um banheiro largado
a mercê dos homens que estupram
em banheiros públicos independendo
se de primeiro segundo ou terceiro grau

foi o reflexo sujo que trouxe
à tona toda a clareza
de precisar ser
a que se defende
a que defende as outras
a que defende as unhas
os dentes
e os espelhos
todos eles quebrados

no chão
além muito além
das honras
estava
pela primeira vez eu
frente a um rosto
a mercê de tantos outros
a espreita esperando uma palavra
que melhor traduzisse o ruído
de uma mulher sozinha
frente a si mesma
escrita na porta
de um banheiro silencioso

o espelho que primeiro me traduziu
publicamente não tinha papel
como não tinha papel minha vida
antes do assombro
de se traduzir em outra.


xxx


Zeta Oph em movimento

Um navio
atravessando céus cósmicos:
o motorista
do ônibus segue seu trajeto
com luz nos olhos quase
sem enxergar que pode bater
a culpa sempre será de quem assume o volante
como naquelas músicas infantis
de resto, é só trocadilho sem graça e passageiro

O ônibus a minha vida
a sua
uma estrela
chamada cósmica
Zeta Oph
a última e mais massiva estrela

Somos todos mais pesados que o sol

Deslizando pelas ruas
do Rio de Janeiro
passageira de si mesma
você começa a ver
a luz aos poucos
questionando se
deveria se sentir
ofuscada
iluminada
ou pegar os óculos escuros
e aproveitar a viagem com os baleiros
te atrapalhando ou ajudando
com suas novas metáforas ruins

A vida é três por um

Nada do que você
encara
vem sozinha

Vinte vezes mais massiva
maior do que o sol você começa
a ver a luz e se pergunta
se isso é ser amada
ou isso é apenas pó
de estrela brilhando
na serra Grajaú-Jacarepaguá

O que te manteria
Zeta Oph em movimento
senão a possibilidade de amar?


xxx


15 minutos

Quando soube que
aquele cara
que escrevia
poemas em menos
de 15 minutos
um universo
uma frase em menos
de 2 minutos
pensei
no tanto de coisas
nunca pessoas
que me atravessam em menos de
15 minutos
estraçalhando a minha rotina

Teve aquela vez
uma loja japonesa
também aquela vez
as poças de óleo
teve a distância
entre eu e a moça da espanha
surgiu um olhar atravessado
dos pombos nos fios
um papo torto
na ceia de ano novo

um tanto de coisas
nunca uma pessoa
que inveja, penso eu
daqueles que só se afetam
quando amam uma pessoa

que inveja,
penso eu
daqueles que só escrevem quando amam

que inveja,
penso eu
mas depois me arrependo
que inferno seria
só ser atravessada
quando algo respira.


 xxx


Coração das trevas

Um buraco negro pode
influenciar a forma
como pensamos:
um telescópio
forjando um observatório
distante de tudo

O tamanho do planeta Terra
é apenas a realidade
dessas dimensões
em um único instrumento
a abertura gigantesca
de um buraco negro na história
alcança a sensibilidade extrema
necessária para se obter
a tão clicada fotografia
paralela e inigualável

a capacidade de explorar
objetos distantes nos mínimos detalhes
em 3x4
tamanha sensibilidade
não se quer só

fotografar um horizonte
é uma enorme conquista, meu bem
o mundo inteiro está naquela estrada
ali em frente

um som brilhante que nos deixe
atraído por sua monstruosa gravidade
enxergando no horizonte de eventos
o “fim da linha” do qual nada,
nem mesmo a luz, consegue escapar

um homem
30 vezes maior que o Sol

não fica difícil entender por que
enxergá-lo era tão complicado
um instrumento que fica desolado
uma parafernalha eletrônica especial

É preciso paciência
a natureza não é aquilo
que esperamos que ela seja
a perspectiva de alcançar
o impossível vai se tornando cada vez mais palpável







Estela Rosa é escritora, poeta e caipira, formada em Letras pela UFRJ. Teve poemas publicados na Revista Grampo Canoa, da Luna Parque Edições, na Revista Parêntesis, na iniciativa Mulheres que Escrevem e na Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura 2017. Já colaborou também com textos para o Jornal RelevO, Revista Blooks e Ovelha Mag. Desde 2016, faz parte da iniciativa Mulheres que escrevem, onde é curadora de textos e organizadora de eventos, realizando encontros mensais sobre mulheres escritoras no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Pilar Bu

























Resistirmos, a que será que se destina?

“apenas a matéria vida era tão fina
e era olharmo-nos intacta retina”
Caetano


minha cabeça sangra
meu nariz sangra
sou uma bomba-relógio
mulher-bomba

se eu pudesse
arrancar com pinça
um a um
os pensamentos
sofreria menos
seria menos

mas no fundo
do nervo óptico
em cada osso
da espinha
nas flores
arrancadas do pé
da barriga
resistiria


xxx



Soror
(para as ninjas)

descobri em você
uma forma de ser livre

Juntas
subvertemos os bons
deturpamos as regras
destruímos a moral
queimamos os manuais

e fizemos tudo
à nossa maneira

encaramos o medo
saltamos no abismo
assumimos a luta
vestimos a imperfeição

abrimos a porta
do inferno
não voltamos mais.


xxx



Zumbis à Calamari

frito ovos com
massa encefálica
os restos
jogo no quintal


xxx



Polishop Selvagem

A letargia desses dias
é a vontade
louca
de me jogar
em um multiprocessador
de cinco velocidades
e zero perdão


xxx



Translúcido e cortante

ainda que a boca
não te dê o deleite
dos lábios
toma essa palavra
entorpecida de sangue
pica com as mãos
e come.


xxx



Linha Turka

nem pó
nem estricnina

arrumei
a cama
a cidade
a estrada

inexistia
necessário
à luz
do dia

não sabia
Dividir-me


xxx


Com as mãos adubar a terra

em todo verme
existe saudade


xxx



Paralelas

saiba que
virando a esquina
nada mais
te espera








Pilar Bu é vampira, leoa, sereia e mãe felina de quatro gatos. Poeta e mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Goiás, já tendo pulicado em diversas revistas eletrônicas. É uma das fundadoras do #leiamulheres Goiânia, além de uma das organizadoras do festival literário [Eu sou poeta]. Já publicou em coletâneas como Maus Escritores (Demônio Negro, 2009) e Os olhos do bilheteiro (Nega Lilu, 2016). Seu primeiro livro de poemas, Ultraviolenta (Kotter Editorial), foi lançado em 2017 em cidades como Goiânia, Brasília e Rio de Janeiro e em breve será lançado em São Paulo e Curitiba. Sua área de estudos é a representação e autorrepresentação de mulheres na literatura, estudos de gênero, autoria feminina e teorias feministas. Acredita na força do superlativo e em versos como vidro: translúcidos, frios, duros e cortantes.